Tuesday, September 04, 2007

Felicidade, dor e liberdade como elementos do homem e da moral em Rousseau.

FELICIDADE, DOR E LIBERDADE COMO ELEMENTOS
DO HOMEM E DA MORAL EM ROUSSEAU
Victor Brandão Ribeiro


“Junto a nós, existem mil lugares por onde a criança pode sair de seu lugar; cabe aos que educam mantê-la nele, e esta não é uma tarefa fácil. Ela não deve ser nem um animal, nem um homem, e sim uma criança” (Rousseau)



A pretensão deste trabalho é que possamos relacionar o conceito de felicidade ao de dor e liberdade como norteadores do homem e da moral; mais precisamente, um estudo do Livro II do Emílio, quando estas questões são tratadas já como propostas pedagógicas da segunda fase da vida. De forma menos enfática, abordaremos como a lei civil contribuiria como instrumento de liberdade e representaria a felicidade do homem nas suas relações. Outro fator importante é o uso adequado da razão, como não pode deixar de considerar, tratando do iluminismo. Neste estudo é a razão na segunda fase da vida segundo Rousseau, a fim de apreender os conceitos de dor, liberdade e felicidade, os quais as crianças o adquirem na vida, nas relações com o mundo e com as pessoas; e não simplesmente nas palavras, apesar desta ter sua função nos controles dos impulsos.

A felicidade merece destaque na obra de Rousseau, na qual a expõe sobre múltiplos aspectos, uma delas é como uma eterna busca, presente na obra Les Rêveries du Promeneur Solitaire. Não é possível falar de uma única felicidade em Rousseau, mas sim, da felicidade da criança, do homem, do sábio, do povo, e tantas outras. Não cabe aqui especificá-las, mas optamos por uma proposta de conceito mais ampla que a relacione à idéia de dor e liberdade e coadune para uma vida moral. Independente dos tipos de felicidade, um sentimento se repete na obra de Rousseau, já sinalizada no final do Primeiro Discurso, “de que serve procurar a nossa felicidade na opinião dos outros, se podemos encontrá-la em nós mesmos!” (Primeiro Discurso, 2006a, p.17).

1. A Dor Moral



Rousseau crer piamente no aperfeiçoamento do ser humano, estabelecido por uma educação desde os primeiros dias de vida, que transformará o indivíduo e a humanidade. Educação que modifica crenças e modo de condutas que interferem no sentimento, e no desenvolvimento futuro da razão. Diante disso, preocupou-se com algo que poderia ficar restrito aos livros de medicina – a dor. Contudo, com a sua sensibilidade de espírito, atribuiu uma importância moral àquilo que poderia ser uma simples e incomoda sensação. A expressão de dor de uma criança é percebida menos pelas condições físicas do que pelas psicológicas, “...o medo que atormenta quando nos ferimos” (Emílio, p.70). Rousseau não pretende fazer um tratado médico sobre o conceito de dor, mas sim, justificá-la como instrumento de aprendizado para o indivíduo transitar para uma vida social. E sinaliza algo importante, as sensações são repletas de significado, atribuído através do processo de aprendizagem, ou pode-se dizer simplesmente, através da vida.

A criança suportando as dores leves, que são a do corpo, aprendera a suporta as grandes, que são as da alma. E assim estabelece o primeiro ensinamento “sofrer é a primeira coisa que ele deverá aprender, e a que ele terá maior necessidade de saber” (Emílio, p.70). Vivemos numa sociedade que ser feliz, ter sucesso e ser o melhor são nossos primeiros ensinamentos, e esquecem que para alcançar todos estes, precisamos aprender a sofrer. Dito de forma mais sutil, ampliar nossos limites de frustração. A lógica de Rousseau está ancorada é que quanto menor o sofrimento mais próximo da felicidade, mas para menos sofrer precisaríamos de tolerância diante das dificuldades ou dores da vida. Rousseau, por exemplo, trata que as quedas de uma criança, não ameaçam sua existência; além do mais, os machucados são compensados pelo bem-estar da liberdade e autonomia. Se uma criança caiu foi porque corria sem amarras. Cair e aprender a levantar é como o corpo prepara alma. O corpo para Rousseau será uma metáfora da vida.

A criança que se comunica através da fala esta na segunda fase da vida, segundo a classificação de Rousseau, a fala é um marco desta fase. Apresenta a importância da linguagem como contenção das expressões mais naturais, como o grito e o choro. Um importante aspecto pôde ser deduzido desta relação entre linguagem verbal e não-verbal: a fala como uma substituta da expressão motora, transição que Rousseau reconhece como progresso natural, se assim não proceder, é por deficiência da relação entre o educador e a criança[1]. A transição da linguagem corporal a verbal se faz necessária, pois evitará mimos provenientes de um convívio social. “Se a criança for delicada, sensível, e naturalmente se puser a gritar por nada, dando gritos inúteis e sem conseqüência, logo secarei essa fonte” (Emílio, p.69). O que Rousseau coloca em questão é o choro como instrumento de socialização ou comunicação na primeira fase; mas já não tem o mesmo efeito com o recurso da fala, se assim proceder passa a ser vícios sociais, deixando de ser uma expressão natural de dor ou necessidade.

A criança deve conhecer a dor, “eu ficaria muito aborrecido se ele nunca se ferisse e crescesse sem conhecer a dor” (Emílio, p.70), ao se referir a Emílio, seu personagem fictício da obra homônima. Contudo, o choro não é uma expressão adequada, enfraquece o espírito, a não ser diante de verdadeiras dores. O que está em pauta, neste momento, para a constituição do sujeito, é o saber sofrer, ser menos sensível, ou apenas aprender a sentir a força que a necessidade impõe, nem mais, nem menos. E assim se aprende não com regras, mas vivendo. A primeira das lições é aprendida sem constrangimentos, sem restrições, sem consciência, só com aquilo que a natureza lhe imputa, as leves dores do corpo. Sem constrangimentos e sem consciência, pois para a criança o que prevalece é o prazer de viver[2]. A liberdade é sentida como o livre gozo.

Ao contrário, do que muitos pensam, seu projeto não preza pelo sofrimento e dor, mas por saborear a vida. “Assim que eles puderem sentir o prazer de existir, fazei com que o gozem” (Emílio, p.73). A idéia de multiplicar as dores na infância é porque têm conseqüências menos nefastas no aprendizado enquanto criança do que virem a se repetir na fase adulta. As dores de um homem com espírito fraco são muito maiores que as dores de uma criança. Então, desde criança deve-se fortalecer o espírito, e não torná-lo débil. Mas a única ação que recai no ensinamento da criança é a própria natureza, é deixá-la livre e aprender com as próprias quedas. “Nossas mania professoral e pedantesca é de sempre ensinar às crianças o que aprenderiam muito melhor por si mesmas” (Emílio, p.71).


2. Felicidade e Liberdade: o menor sofrimento e a menor dependência.

Rousseau critica as pedagogias, e este é um importante ponto de reflexão: “sacrifica o presente para o futuro incerto” (Emílio, p.72). Há referências que a taxa de imortalidade infantil era alta na época, o que leva a crer que se referia a este aspecto do “futuro incerto”. Como também, pode ser analisada sobre um aspecto menos materialista, uma importante crítica que forma o homem para o futuro sacrificando seu presente. A sensação é de um vazio, de um homem que não está aqui e nunca chegará - “sempre considera o presente como nada e, perseguindo sem tréguas um futuro que foge à medida que avançamos, de tanto nos levar para onde não estamos, leva-nos para onde não estaremos nunca” (Emílio, p.73). E arremata a idéia colocando que os adultos estão preocupados em ajustar as más inclinações de uma criança, sem se procurar saber se as más inclinações não provêm de seus ensinamentos e não do desenvolvimento natural. Outra referência importante sobre o que é felicidade, é um fato presente, e não uma expectativa futura.

O conceito de felicidade de Rousseau é extremamente importante, pois é a sua compreensão que liga o primeiro ensinamento da criança – o saber sofrer – ao homem e ao cidadão. Dentro de uma visão mais ampla, uma felicidade negativa: “O mais feliz é o que sente menos sofrimento; o mais miserável é que sente menos prazeres” (Emílio, p.74). Rousseau relaciona o conceito de dor ao de felicidade, num paralelo entre a criança e o adulto. Enquanto criança ensina-se a suportar às pequenas dores, para sofrer menos enquanto adulto. O adulto equilibra os desejos, que supõe penosas privações às nossas faculdades. Não cabe ao homem diminuir os desejos ou ampliar as faculdades, mas “diminuir o excesso de desejo relativamente às faculdades” (Emílio, p.74). Só é possível avaliar o desejo a partir do quanto posso alcançá-lo. A partir de tal tarefa pode-se avaliar a inibição dos desejos, um exercício que deve ser praticado na infância, para que seja mais leve na fase adulta e uma autodeterminação, e não vi da obediência a outro.
O homem para deixar sua alma tranqüila deve equilibrar o poder e o desejo, esta possibilidade só é possível olhando para si. Este é o caminho da felicidade, muito próximo das considerações que Silva destacou sobre a felicidade:
“...uma certeza interior que possa imediatamente assegurar a conduta cotidiana e garantir, apesar da incompreensão e das perseguições, o homem de paz e de serenidade que ele sempre aspirou” (Silva, p.155).

O homem civil que estabelece o contrato precisa saber perder e aceitar os limites do mundo real e do outro, para que possa agir em interesse comum. Não podemos ampliar o mundo real, diz Rousseau, reduzamos o mundo imaginário. Entendam por isso, se não podemos mudar o mundo, mudemos a nós próprio. Há uma relação entre as coisas real – exterior-, e um “eu” – interior-. Reis (2005, p.141) explora este assunto e nos esclarece:
“A metáfora espacial presta-se a muitos usos, a analogia pode desdobrar-se em várias outras. Uma delas é a de exploração: o indivíduo representado como um “eu”, ocupando-se de si mesmo, explora seu espaço interior, à maneira de um excursionista. Mas o imaginário do espaço também abriga as imagens de ocultação, de obstáculo: não é raro que o indivíduo, em suas excursões pelo espaço interior, depare-se com abismos, profundezas, barreiras intransponíveis”.


Rousseau, filósofo estrangeiro, revela sobre seus pares e sobre si: “ Aí estão, estrangeiros, desconhecidos, nulos em definitivo para mim, porque assim eles o querem. Mas eu, separado deles e de tudo, Quem sou? Isto é o que me falta descobrir” (Premiére promenade, 2006c p.1). É como existisse um ser além da vida moral, e revela logo adiante: “O hábito de entrar em mim próprio, me fez perder o sentimento e quase a lembrança do mal, aprendi ainda pela minha própria experiência que a fonte da felicidade está em nós” (Seconde promenade, 2006c p.5).

Lévi-Strauss abordou este “quem sou?” como um “Eu” epistemológico no qual Rousseau expressa que existe um outro de que se pensa em mim, e que me faz duvidar em primeiro lugar de que sou eu o que pensa. Esta tarefa só é possível, pois a resposta a esta pergunta não seria tão somente do cogito cartesiano, mas do ser que se sente. Assim expresso no Emílio: “Para nós, existir é sentir; nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior à nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes de ter idéias” (Emílio, p.410). Rousseau se desfaz de um “eu” tão certo de si, e o considera objeto estranho, não familiar, passível, como qualquer outro objeto, de pesquisa[3].



3. A Liberdade a serviço da Felicidade



A sociedade enfraquece o homem por retirá-lo o direito sobre sua força. E ser forte é viver e se contentar com o que se é, diz Rousseau (Emílio, p.81). A sociedade torna o homem fraco porque o faz se sentir maior que a humanidade. O homem forte é o homem livre, e a liberdade é limitada pela força da natureza, “o homem verdadeiramente livre só quer o que pode e faz o que lhe agrada” (Emílio, p.81). Ou seja, no momento que ele precisa de outro, seja da opinião ou do braço, não se bastando por si próprio, será um homem fraco, escravo e infeliz, pois não estará em equilíbrio: potência e necessidade. A liberdade é o primeiro de todos os bens. Se a criança é fraca em comparação ao homem não é pela força física ou absoluta, mas pelo seu estado de dependência, mas esta é compensada ou suprida pela afetividade entre os pais e as crianças.

Entende que antes que as instituições humanas alterem as inclinações naturais, a “felicidade da criança e dos homens consiste no uso de sua liberdade” (Emílio, p.82). Ser feliz, agora, é ser livre. A criança terá uma liberdade imperfeita, pois vive numa condição de fraqueza ou dependência, assim como o homem no estado civil. Assim, compreende-se que o júbilo da liberdade infantil, ou a ignorância feliz da criança do seu estado de dependência, é para compensar seu estado de fraqueza. Satiricamente Rousseau conclui “éramos feitos para sermos homens, as leis e a sociedade voltaram a mergulhar-nos na infância” (Emílio, p.82). O que seria um estado de dependência e ignorância feliz.

A falta moral é proveniente do estado de dependência entre os homens. A forma de remediar este mal será substituir o homem pela lei, e a vontade do rei, pela vontade particular. As leis surgem como instrumento de liberdade, é a dependência das coisas. Rousseau distinguiu dois tipos de dependências “a das coisas, que é da natureza, e a dos homens, que é da sociedade” (Emílio, p.82). A dependência que se estabelece entre os homens, e não entre as coisas, não prejudica a liberdade ou cria vícios, pois estas não têm nenhuma moralidade. O que leva a crer, que a lei civil para o homem tem o mesmo valor imperativo da lei natural para criança. Exercitar e sensibilizar a criança na lei da natureza, estará preparando o homem para a lei civil, exercícios para o estado de liberdade, humanidade e comiseração. Rousseau compreende que o “homem que não conhecesse a dor não conheceria nem a ternura da humanidade, nem a doçura da comiseração” (Emílio, p.86). Agora, relaciona-se o conceito de dor e liberdade ao de vida moral. O que pode ser questionado que a lei civil para ser tão perfeita e justa quanto a lei natural deveria ser feita por homens perfeitos e justos, e ainda não sei como se resolve este problema na obra de Rousseau.

Contudo, não é caminho da razão que deve dirigi a criança. Educar uma criança pela razão é começar pelo fim. Se as crianças ouvissem a razão, não precisariam ser educadas, educá-la pela palavra é corrompê-la prematuramente. Dar ao homem o lugar de homem, e a criança o de criança, diz Rousseau. A preocupação é não fazer uso inadequado da razão, e empregá-la num momento oportuno. “Fazei melhor do que isso: sede razoável e não raciocineis com vosso aluno” (Emílio, p.97).

As idéias das crianças deveriam se deter nas sensações. Rousseau conserva a razão para o momento adequado na vida humana, ou a maturidade racional que vem com o tempo. E estabelece o conceito de infância que perdura até os dias atuais, “a infância tem maneiras de ver, de pensar e de sentir que lhe são próprias” (Emílio, p.91). A filósofo genebrino fez perceber que a infância é sempre, não foi algo, e não é mais. Não que esta idade seja desprovida de razão, mas adquire “toda razão de sua idade, ele foi tão feliz e livre quanto lhe permitia sua constituição” (Emílio, p.208). Desta forma, a razão desta idade não é dos grandes discursos e perguntas, “as perguntas repetidas demais aborrecem e cansam a todos, e com maior razão as crianças”[4] (Emílio, p.209).

Pode-ser perceber que o conceito de felicidade em Rousseau passa por muitas definições: ao de prazer, ao da menor dor e ao de liberdade. Estes múltiplos aspectos não condizem uma contradição, mas estão inter-relacionados, preparando o homem para a sua condição inexorável, ser o que é, com a sensibilidade dos sentimentos e o bom uso da razão. Tentamos demonstrar que Rousseau se esforça por atribuir ao homem, força de espírito, prazer e liberdade como condições do homem universal, e como elementos que podem ser úteis ao homem civil. Longe de finalizar este assunto, espero despertar o interesse por conceitos que movem a alma como a esperança na felicidade.



















REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


LÉVI-STRAUSS, Claude. Jean-Jacques Rousseau, fundador de lãs ciências Del hombre. In: Sazbón, José (org.). Presencia de Rousseau. Colección Teoria e investigación en las ciencias del hombre. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1972.

REIS, Cláudio e Araujo. Unidade e liberdade: o indivíduo segundo Jean-Jacques Rousseau. Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2005.


ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. Tradução: Roberto Leal Ferreira. – 3º Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Paidéia).

___________________. Les Rêveries du Promeneur Solitaire. Fonte Gallica, Bibliothéque Numérique de la Bibliothéque Nationale de France.
Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7295. Acessado em Junho. 2006

SILVA, Genildo Ferreira da. Rousseau e o Fundamento da Moral: entre a razão e religião. São Paulo, Campinas: Unicamp, 2004. (Tese de Doutorado)


[1] Tema posteriormente explorado por pensadores da área de educação como Henry Wallom, Jean Piaget, Vigostki
[2] Rousseau, sobre este assunto, explicitamente recorre a Platão na proposta de educação na República: “Ficais alarmados por vê-la consumir seus primeiros anos sem nada fazer. Como! Não é nada ser feliz? Não é nada saltar, brincar, correr o dia todo? Em toda a sua vida, nunca estará tão ocupada. Platão, em sua República, considerada tão austera, só educa as crianças em festas, jogos, canções, passatempos; dir-se-ia que ele terminou quando lhes ensinou a se divertirem bem” (Emílio, p.118).
[3] Este espaço interior tão explorado por Rousseau é originário da tradição Iluminista, como bem esclarece Reis (2005, p.151) apresentado as fontes de Rousseau. “A imaginação do espaço do interior em Rousseau, portanto, é alimentada por essas duas fontes principais: a psicologia lockeana, de um lado, enriquecida por todas as contribuições posteriores; e, de outro, a tradição dos moralistas com sua imagem predileta do coração. É essa, (...) a imagem mais comum em Rousseau para designar a interioridade. O termo “coração” conta quase 2.500 ocorrências em toda obra.

[4] Seria uma crítica a maiêutica Socrática? Recurso tão utilizando no seu Primeiro Discurso.

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